domingo, 11 de julho de 2010

Dia 100: Sopa de Pedras

E chegamos à centésima sopa deste nosso blog!

Centésima sopa preparada com nossas mãos e energia, centésima sopa saboreada, centésimo encontro, centésimo pretexto para compartilhar bons momentos.

Ficamos pensando como marcar este dia. Decidimos que queríamos celebrá-lo com amigos. E eu com meu pendor de contar histórias... (acho que isso veio no sangue, do lado de meu pai, Joseph Dimitri Christophe, que era um ótimo contador de histórias, sentava à beira da minha cama toda noite e contava uma história inventada... e aí era um drama porque meu irmão Jean-Claude Christophe queria a história do mesmo jeito todo dia). Bem, eu comentava... este viés pela história me fez lembar dos ritos de abundância e fecundidade dos povos primitivos. Queria celebrar a abundância que todos os dias provê nosso alimento à mesa. Também queria que fosse alguma coisa bem lúdica e alegre.

Daí lembrei de uma lenda que tinha lido numa dessas vezes em que estava pesquisando tradições culinárias pelo mundo: a sopa de pedras portuguesa. Pesquisando um pouco mais, descobri que a França e a Inglaterra também têm sua sopa de pedra (stone soup / soupe aux pierres). E é claro que a tradição atravessou o Atlântico com a sopa de pedra brasileira, do malandro Pedro Malasartes, eternizado no conto de Ana Maria Machado.

Perfeita a história, perfeita a brincadeira para unir amigos.

Convidamos alguns dentre tantos queridos, porque estes seguem de perto nossos passos e repetem as sopas, ou nos servem de cobaias!

E pela primeira vez, vamos abrir exceção e publicar neste espaço foto de gente, preparando a sopa. Que esta é a graça, preparar juntos, com ingredientes trazidos pela própria pessoa.

Vamos então à aventura:

Primeiro, vamos ler e ouvir o depoimento de Jorge Aldrovandi, meu marido e companheiro de experiências, não só neste blog:

"Que yo recuerde, la primera vez que leí una historia en relación a la sopa de piedra fue en uno de los libros de aprendizaje de lectura de la escuela pública en Uruguay, cuando yo tenía unos 10 años.

Siempre me pareció una historia con una moraleja por atrás, pero no estaba claro para mi, si era una reflexión acerca de la "viveza criolla" o un himno sensorial al potencial de la cooperación humana.

Durante la sopa de piedra que hicimos aquí en casa, donde conseguimos colectivamente un resultado sorprendente que comenzó en un "casi nada", esta sopa "open source" , ou melhor, "crowd source" parece ser una buena manera de demostrarnos a nosotros mismos que el camino puede ser tan interesante como el resultado y este puede ser una incógnita absolutamente disfrutable de crear, des-cubrir y des-tapar. Buen provecho!"

No passeio pelas culturas que comentei, encontrei a lenda da sopa de pedras, associada sempre à fome em certas épocas de guerra ou catástrofes, e à esperteza de quem tenta driblar a negativa dos habitantes em compartilhar o alimento com um forasteiro.

Em inglês a história começa assim: "Once upon a time, there was a great famine upon the land. Three soldiers, hungry and weary of battle, came upon a small and impoverished village".
Na Bretanha, França, o viajante da lenda tem até nome: Charlie. "Un homme qui s'appelait Charlie, était un voyageur agricole qui parcourait la France à la recherche de travail. Il avait faim . Il croisa un homme , un vagabond sur son chemin".

Mas a tradição dessa sopa de pedras e da que me inspirou vem de Portugal, da região do Ribatejo, e tem até uma capital da sopa de pedras que é a bela cidade de Almeirim.
Lá, contam os portugueses que...

"Um frade pobre, que andava em peregrinação, chegou a uma casa e, orgulhoso demais para simplesmente pedir comida, pediu aos donos da casa que lhe emprestassem uma panela para ele preparar uma sopa – de pedra... E tirou do seu bornal uma bela pedra lisa e bem lavada. Os donos da casa ficaram curiosos e, de imediato, deixaram entrar o frade para a cozinha e deram-lhe a panela. O frade colocou a panela ao lume só com a pedra, mas logo disse que era preciso temperar a sopa... A dona da casa deu-lhe o sal, mas ele sugeriu que era melhor se fosse um bocado de chouriço ou toucinho. E lá foi o unto para junto da pedra. Então, o frade perguntou se não tinham qualquer coisa para engrossar a sopa , como batatas ou feijão que tivessem restado da refeição anterior... Assim se engrossou a sopa “de pedra”. Juntaram-se cenouras, mais a carne que estava junta com o feijão e, evidentemente, resultou numa excelente sopa.
Comeram juntos a sopa e, no final, o frade retirou cuidadosamente a pedra da panela, lavou-a e voltou a guardá-la no seu bornal... para a sopa seguinte!"

A preparação:

Pedimos a cada casal que trouxesse um legume, uma verdura, uma carne (podia ser chouriço, paio, linguiça, costelinha, o que fosse), uma massinha ou cereal. Uma coisa só.

Eu comprei algumas pedras roladas pequenas, no Mundo Verde, porque queria presentear os amigos, para que levassem de volta uma pedra para a próxima sopa. E utilizei no fundo da panela pedras de minha coleção (sim, coleciono pedras dos lugares que amo, sempre que as encontro soltas e que me atraem). Escolhi as pedras da sopa pelas cores, por sua energia especial (verde para a cura, rosa para o amor, amarelo para a emoção, violeta para a transmutação, e assim por diante).

Também providenciamos alguns ingredientes básicos, caso ninguém os trouxessem: cebola, alho, alho porró, e um chouriço português, autêntico, que comprei no pequeno supermercado em que se transformou a Panificação União, aqui perto, no Humaitá. Pães variados, como o português sacadura, as baguetes e o pão rústico italiano aguardavam à mesa.

Os amigos trouxeram vinhos tintos que se somaram aos nossos para a festa.

Mas além dos ingredientes, vinhos, m]ão de obra, os amigos trouxeram seus conhecimentos e experiências e muita alegria. Várias dicas desta sopa são de autoria de Márcio Goldzweig, por exemplo, o feijão socado com alho para engrossar, o farelo de pão, ferver as linguiças para desengordurar... Daí o que Jorge gosta de chamar de crowd source, o conhecimento do coletivo.

Avisamos a todos que crianças são bem-vindas, como sempre foram em nossa casa. Claudio e Patrícia Chalom trouxeram a Bruna, que ajudou com seus dedinhos delicados a desfolhar o frágil aneto (também chamado de endro ou dill). Depois, ficou mexendo o chocolate para a sopa de sobremesa e por fim repartiu as pedras!

Cozinhando com amigos:

A dona da casa deve atuar neste dia como um maestro de uma orquestra, para não desandar a festa. Pode e deve recrutar quem tem algum talento para a cozinha ou quem tem disposição de verdade para auxiliar nos preparativos que são muitos. Como todos chegam praticamente juntos, precisa ter espaço reservado para lavar, picar e reservar os ingredientes. Se algum faltar, entram os coringas da casa. Se algum definitivamente não combinar com nada, precisa saber estrategicamente fazê-lo desaparecer de circulação ou colocar o mínimo para não entristecer quem o trouxe. E quem só agita, pode ser convidado a relaxar e aproveitar a festa na sala, cuidar das bebidas ou simplesmente conversar! É muito divertido!

Esperamos que nossa experiência sirva de inspiração para quem se animar a criar sua própria sopa de pedras. Nenhuma sairá igual à outra, e todas serão deliciosas e responsáveis por momentos inesquecíveis entre amigos e família.

Receita de Sopa de Pedras
(assim saiu a nossa)

Ingredientes (para 12 pessoas):
  • pedras de tamanhos, cores e formatos variados
  • 2 cebolas grandes
  • 6 dentes de alho
  • 1 alho porró
  • 4 batatas-baroas
  • 1/2 nabo japonês
  • 4 tomates maduros
  • uma bandeja de cogumelos shitake cortados em tirinhas
  • 2 cenouras
  • 1 pedaço de gengibre
  • 2 talos de aipo
  • 1 maço de couve
  • 100 g de feijão manteiga
  • 1 chouriço
  • 1 linguiça calabresa
  • uma xícara de chá de massinha de letrinhas (se houver crianças entre os comensais).
  • dois ramos de salsa
  • sal
  • harissa (molho de pimenta marroquino, mas a nossa malagueta é ótima)
  • água que baste
  • alguns ramos de aneto
  • queijo pecorino ou grana padano (ou algum queijo parmeson de boa qualidade), ralado no ralo grosso.
Modo de fazer:
  • Limpe as pedras com detergente e água corrente, utilizando uma escovinha. Enxágue muito bem e reserve.
  • Cozinhe o feijão à parte em água e pouco sal e reserve.
  • Corte a linguiça e o chouriço e coloque numa panela com água para ferver e tirar o excesso de sal e gordura. Atenção que o melhor é não deixar abrir completamente a fervura, jogar a primeira água fora, acrescentar água limpa e reperir o processo enquanto se prepara o resto.
  • Escolha uma panela bem grande e coloque as pedras no fundo, cobertas de água, com fogo baixo para que quando os convidados chegarem ela esteja fervendo.
  • Mantenha uma chaleira com água fervente para acrescentar à panela de sopa, na medida do necessário.
  • Prepare todos os ingredientes à medida que forem chegando: lave tudo, pique as cebolas e o alho, os talos de aipo e o alho porró, os tomates, as batatas baroas, as cenouras. Tire o talo das couves, faça charutinhos e corte fino como para couve à mineira. Lave a salsa e o aneto e desfolhe-os.
  • Vá colocando os ingredientes mais duros primeiro, depois os legumes, as carnes e por último as folhas e a salsa. Deixe o aneto em uma tigelinha à parte para servir à mesa.
  • Soque o feijão com o alho picado e um pouco de sal, o que dará uma ótima textura à sopa.
  • Os ingredientes devem estar sempre cobertos pela água dentro da panela.
  • Sempre com a chama baixa, deixe a sopa ferver em panela destampada por no mínimo 40 minutos, para integrar bem os ingredientes.
  • Tempere com sal e pimenta só ao final, nos últimos cinco minutos de cozimento.
  • Também neste momento acrescente a couve cortadinha, para que não amarele.
  • Divida em uma ou duas sopeiras e leve à mesa bem quente.
Dica 1: as pedras não podem ser muito pequenas, para não correr o risco de irem à boca numa colherada e quebrar um dente.

Dica 2: como chef e maestrina, você regula as quantidades, se achar o resultado na panela pouco, lance mão de suas reservas, mesmo que não tenham sido trazidas pelos convidados: batatas, cebolas, tomates são ótimos para isso. Se já não tiver massinha na panela, até arroz cozido dá conta do recado. Para engrossar, vale miolo de pão dormido esfarelado no caldo.

Dica 3: deixe sua mesa preparada com os pães, o queijo ralado, os temperos (pimentas, sal, aneto ou outra erva) e um bom azeite, que cada um serve a gosto, sobre o prato de sopa.

Dica 4: quem achar uma pedra no prato a leva para a próxima sopa; quem não achar nenhuma pesca uma na panela ou da sopeira ao final da refeição, já que por serem pesadas elas tendem a ficar no fundo.
----------------------------------------------------------------------------

3 comentários:

Claudio Chalom disse...

Adoramos estar com vocês nesta noite. Foi uma surpresa agradável experimentar , ajudar a preparar e descobrir a história da Sopa de Pedra.

Marcio disse...

Caramba! Só vi o Post agora! Vcs nem avisaram! Foi inesquecível a noitada. Vamos fazer outra versão da Sopa de Pedra na edição no. 200.
Adoramos estar com vocês.

Anônimo disse...

Que saudades! Feliz ano novo! Repleto de alegria e prosperidade!!! beijocas Lu